Em 1993, uma dupla de pesquisadores brasileiros, a Professora Luisa Lina Villa e o Professor Eduardo Franco, iniciaram um estudo prospectivo, ou coorte, com o objetivo de entender como a infecção pelos diferentes tipos de papilomavírus humano (HPV) leva ao desenvolvimento de câncer cervical – o câncer de colo de útero.
O Estudo de Cooorte Ludwig-McGill acompanhou em torno de duas mil e quinhentas mulheres voluntárias durante 5 anos, além de ter acompanhado uma parte dessas mulheres por 10 anos. Hoje, 31 anos após o início desse estudo, a Professora Luisa Villa e o Professor Eduardo Franco transferem a liderança do projeto para as Professoras Laura Sichero e Helen Trottier, que também estiveram envolvidas no estudo em algum momento de suas carreiras.
O C2PO conversou com as Professoras Luisa Villa e Laura Sichero sobre a realização e a importância do Estudo Ludwig-McGill, e a transferência da liderança.
C2PO: Como foi concebido e desenvolvido o Estudo Ludwig-McGill?
Professora Luisa Villa: Esse estudo de coorte, começou no Brasil, em São Paulo, quando o Professor Eduardo Franco e eu estávamos no Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer. Eu fazia pesquisas sobre o HPV, e o Professor Eduardo estava começando a fazer estudos de Epidemiologia de Câncer. Nós nos unimos para desenhar esse estudo sobre HPV e Câncer.
Nós nos perguntamos o que sabíamos sobre HPV naquela época – início dos anos 1990 – e planejamos como fazer um acompanhamento de diversas mulheres brasileiras, por um longo período, para compreender a história natural do HPV e a sua relação com o câncer cervical.
Havia muito pouco conhecimento sobre o assunto na época em que iniciamos a coorte. Esse estudo foi pioneiro em múltiplos aspectos. Em poucas palavras, nós buscamos entender o seguinte: O que acontece quando uma mulher se infecta por HPV? A infecção persiste ou é eliminada? Se é eliminada, em quanto tempo? Quais mulheres infectadas por HPV desenvolvem câncer cervical? Quais são as características dessas mulheres?
Por “história natural” eu quero dizer que nós não fazíamos intervenções: as mulheres viviam suas vidas normalmente, e nós colhíamos amostras, realizávamos testes, e verificávamos os desdobramentos. Muito material foi gerado, processado e armazenado. As participantes eram acompanhadas com muitos instrumentos: questionários, testes de HPV, citologia cervical etc., e quando necessário, eram seguidas e encaminhadas para tratamento, notadamente no caso de desenvolverem lesões cervicais de alto grau.
As mulheres voltavam para uma visita a cada 6 meses e foram acompanhadas por 5 anos. Algumas saíram do estudo ao longo do tempo, mas a taxa de retorno foi muito grande: nós começamos com cerca de 2.500 mulheres e terminamos o quinto ano com cerca 1.900. E algumas delas chegaram a ser acompanhadas por 10 anos.
Hoje não acompanhamos mais as participantes, mas continuamos gerando resultados a partir do que foi feito 30 anos atrás.
C2PO: Quais foram as principais descobertas científicas, impactos e contribuições do estudo ao longo desses trinta e um anos?
Professora Laura Sichero: Foram inúmeras contribuições. Esse estudo foi desenvolvido com o intuito de responder perguntas acerca da história natural da infecção por HPV e como a infecção leva ao desenvolvimento de lesões pré-malignas na cérvice uterina. Ele foi fundamental para avaliar a prevalência de HPV nas mulheres pesquisadas, estabelecer quantas dessas mulheres tinham infecções de caráter persistente e quais mulheres chegavam a desenvolver as lesões na cérvice uterina.
Um dos resultados mais importantes foi a descoberta de que determinados tipos de HPV, aqueles considerados de alto risco, estão associados à maior persistência da infecção do que os tipos de HPV considerados de baixo risco. E também que os HPVs de alto risco estão mais associados ao desenvolvimento de lesões pré-neoplásicas que os HPVs de baixo risco.
Ainda, diferentes fatores de risco para a infecção por HPV e o desenvolvimento de lesões cervicais foram revelados no estudo – fatores que consistem principalmente de variáveis sexuais. Por exemplo: a prevalência de HPV é maior nas mulheres mais jovens, nas que tiveram a primeira relação sexual em idade precoce e nas que reportaram maior número de parceiros sexuais. Todas essas variáveis foram observadas nesta coorte.
Professora Luisa Villa: De fato, demonstrou-se de forma pioneira em nossa região, que a mulher que se infecta por um HPV de alto risco que se mantém ao longo do tempo é aquela que lá adiante pode ter o câncer no colo do útero. Nas outras mulheres, há a infecção transitória, com a eliminação do HPV em alguns meses. Apenas 10% das mulheres, aproximadamente, têm o risco de ter câncer cervical.
E é importante destacar a questão da metodologia: desde o início nós sempre utilizamos uma metodologia baseada em PCR, que é a melhor, mais sensível e mais específica para detectar diversos tipos de HPV. Nós testávamos uma gama de 30 tipos de HPV. Foi isso que permitiu definir os perfis de risco: HPV-16 e HPV-18 como de alto risco, seguidos do HPV-31 e HPV-45, e uma gama de mais nove ou dez intermediários. Outros tipos são encontrados em câncer, mas eles não são tão prevalentes. Agora os que oferecem maior risco – “os pestilentos”, como eu costumo dizer – são em torno de dez tipos mais oncogênicos. E o nosso estudo contribuiu para esse conhecimento.
C2PO: Quais foram os principais desafios e dificuldades de fazer um Estudo com essa complexidade e com essa duração?
Professora Luisa Villa: O grande desafio foi o planejamento. Esse estudo – e eu digo com orgulho – foi minuciosamente planejado pelo Professor Eduardo Franco e por mim. Nós pensávamos em cada detalhe, e cada pergunta era muito bem embasada. Obviamente, nós tivemos reforços, chamamos colaboradores, trabalhamos com pessoas no Brasil e fora do Brasil, mas nós tínhamos uma visão muito clara dos próximos passos que precisariam ser dados a depender dos desdobramentos que encontrássemos. Nós não vislumbrávamos apenas um recorte ou um momento, mas entendíamos que seria necessário manter o estudo vivo, dinâmico e real por muitos anos. Afinal, era um estudo de acompanhamento, e a história natural do câncer do colo do útero não ocorre em meses, mas em anos: 10 anos, 15 anos. Então também tínhamos que manter a adesão das voluntárias por muito tempo. As altas taxas de adesão foram cruciais para que houvesse sucesso e nós contamos com duas enfermeiras extremamente competentes. É importante falar disso porque é um estímulo para o pessoal que está começando a desenhar estudos como esse, para que desenvolvam bem seus projetos. Se não for bem planejado, vai por água abaixo.
Também é um desafio manter o empenho para gerar publicações. Às vezes você tem pessoas trabalhando no laboratório, mas os artigos científicos demoram para ser escritos. Você pode comunicar as descobertas em um Congresso, mas a pesquisa só é ouvida e valorizada se houver publicações internacionais.
Além disso, há sempre uma dificuldade representada pela busca de apoio financeiro para esses estudos. Nós tivemos um enorme apoio na época, porque o Professor Eduardo e eu éramos funcionários do Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer, na ocasião dirigido pelo Professor Ricardo Brentani da FMUSP, mas nós também buscamos recursos em entidades de fomento à pesquisa, como a FAPESP e os Instituto Nacional de Saúde dos EUA (National Institute of Health – NIH), e isso foi crucial para manter a pesquisa por vários anos.
C2PO: Qual foi a importância do Estudo Ludwig-McGill para a formação de pesquisadores?
Professora Luisa Villa: A formação de dezenas de pessoas foi um desdobramento importante desse estudo. Foram muitos Mestres e Doutores que receberam treinamento no âmbito da coorte Ludwig-McGill, e contribuíram resultados e publicações, como é o caso da Professora Laura.
O período mais intenso foi o dos primeiros 20 anos. Nos primeiros 10 anos houve a formação de pesquisadores que trabalhavam ativamente manipulando amostras e fazendo o seguimento das mulheres. Nós tivemos alunos de diferentes categorias, e diferentes formações, além de outros colaboradores. E nós formamos pessoas que depois continuaram a fazer trabalhos nas suas próprias coortes, em diversos estados do Brasil e também fora do Brasil, por exemplo na Argentina.
Hoje, a coorte Ludwig-McGill representa uma fonte riquíssima de resultados laboratoriais e de enquetes epidemiológicas, além de amostras biológicas que estão armazenadas em um biorrepositório e continuam gerando novas publicações derivadas de novas análises quer seja novos testes laboratoriais ou novas análises epidemiológicas visando responder novas perguntas.
C2PO: Podem falar mais sobre o biorrepositório?
Professora Laura Sichero: O biorrepositório é a coleção de amostras obtidas durante as visitas das voluntárias. Todas as vezes que elas vinham para uma visita, além de responderem a um questionário epidemiológico – sobre variáveis de higiene, variáveis sexuais, variáveis sociodemográficas etc –, havia coleta de amostras. Foram coletados esfregaço de colo de útero – para fazer testes citológicos e para fazer testes com extração de DNA –, além de fazer o teste de detecção de HPV, e coletar uma amostra de sangue.
Foram cerca de 2.500 mulheres que vieram no primeiro ano a cada quatro meses e depois perto de 2.000 continuaram vindo por mais quatro anos a cada seis meses. Da visita de cada mulher nós temos o esfregaço cervical coletado, temos o DNA extraído da amostra cervical e temos uma amostra de sangue. São dezenas de milhares de amostras. Isso tem que ser muito bem catalogado e conservado, porque é um biorrepositório riquíssimo.
C2PO: Como são as atividades no Estudo hoje?
Professora Laura Sichero: O Estudo vai continuar sendo o que ele foi. As perguntas para o qual ele foi desenhado foram respondidas lá atrás. Mas hoje a gente adquire novos conhecimentos e formula novas perguntas. Eu sempre falo: a gente termina um projeto, responde uma pergunta e surgem mais dez. Essas novas perguntas extrapolam o que foi o projeto original, mas são elas que mantêm o projeto vivo.
A gente tem o biorrepositório e também um banco de dados enorme: não só com dados sociodemográficos das voluntárias, mas também com dados de análises citológicas, além de todas as variáveis que foram avaliadas: variantes genéticas do hospedeiro, variantes dos HPVs, carga viral, sorologia, entre outros. Isso está tudo armazenado. Esse banco de dados é muito rico, e ele vai sendo expandido com novas informações, e passa a responder perguntas mais atuais.
Algumas perguntas que fazemos hoje podem ser respondidas sem a necessidade de fazer testes laboratoriais adicionais. Temos pessoas que pesquisam utilizando os dados que já existem. Mas algumas vezes é necessário fazer testes adicionais, então a gente recupera as amostras do biorrepositório, segue todos os procedimentos ético, e faz novos testes para obter respostas. Então, as amostras colhidas anos atrás ainda geram novos trabalhos, e dão a chance de novos alunos desenvolverem projetos e fazerem análises.
C2PO: Existe alguma pergunta específica que está no horizonte para ser respondida?
Professora Laura Sichero: Hoje temos pesquisado sobre a latência da infecção. Isto é, se você detecta uma infecção por HPV de novo em uma mulher, será que é uma nova infecção ou é uma reativação de uma infecção antiga? Essa era uma pergunta que não se tinha na época, e temos algumas publicações muito relevantes saindo agora utilizando os dados da coorte Ludwig-McGill.
C2PO: O Estudo também teve importância para a formulação de políticas públicas, especialmente a vacinação contra o HPV?
Professora Laura Sichero: Estudos como o Ludwig-McGill tiveram uma relevância em termos de política pública porque aumentaram os conhecimentos que nós tínhamos na época em relação à história natural da infecção. A gente viu que dos mais de 200 tipos de HPV descritos, apenas uma parcela causa câncer de colo de útero em mulheres. Hoje, a Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (IARC) da Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhece 13 tipos de HPVs como causadores de câncer cervical.
E as pesquisas foram fundamentais para que as empresas que desenvolveram as vacinas pudessem saber contra quais tipos de HPVs as vacinas precisavam proteger, com o intuito de beneficiar o maior número de mulheres. As primeiras vacinas protegiam contra os HPV-16 e HPV-18, que são os HPVs de alto risco mais prevalentes. Esses dois tipos de HPVs respondem por 75% dos cânceres de colo do útero. As pesquisas demonstraram que se a gente protegesse contra esses dois tipos de HPV, a gente protegeria 75% das mulheres.
Além disso, o HPV-16 é o tipo mais prevalente em todos os tumores causados por HPV que não são o do colo do útero, então a maior parte dos tumores de vulva, vagina, pênis, orofaringe e canal anal relacionados ao HPV, são causados pelo HPV-16. Portanto, a vacina protege contra uma gama de doenças, apesar de o conhecimento inicial ter sido gerado em câncer de colo de útero, que é o tumor causado por HPV mais frequente em todo o mundo.
Ainda mais, a vacina quadrivalente protege contra o HPV-6 e o HPV-11, que são dois tipos de baixo risco que respondem por 90% das verrugas genitais.
C2PO: E como são as vacinas agora?
Professora Laura Sichero: Hoje temos uma vacina nonavalente, que protege não apenas contra os quatro tipos de HPV incluídos na vacina quadrivalente, mas também protege contra mais cinco tipos de HPVs de alto risco que, junto com HPV-16 e HPV-18, respondem por 95% dos cânceres de colo de útero. Mas a vacina nonavalente ainda não é aplicada no nosso Sistema de Saúde Público. A vacina que temos disponível é a quadrivalente, que protege contra HPVs 6 e 11 (90% das verrugas genitais) e contra HPVs 16 e 18 (75% dos cânceres de colo de útero).
C2PO: Além de, no momento, o SUS não utilizar a vacina mais atual, há mais alguma falha na política pública brasileira de controle de câncer de colo de útero?
Professora Luisa Villa: No Brasil ainda se usa o exame papanicolau para rastreamento de lesões precursoras de câncer cervical. Esse é um rastreamento baseado na morfologia das células descamadas do colo do útero, o que tem uma sensibilidade moderada, de cerca de 50% a 60%. Logo, metade das mulheres que fazem o exame não estão sendo acompanhadas adequadamente. Seria mais adequado utilizar uma metodologia de rastreamento baseada em teste molecular de HPV. Essa implementação começa a ser discutida no Brasil, enquanto vários países do mundo já estão aplicando essa metodologia muito mais sensível no rastreio do câncer do colo do útero.
C2PO: O que significa a transferência do papel de pesquisadora principal do Estudo, da Professora Luisa Villa para a Professora Laura Sichero?
Professora Luisa Villa: O Professor Eduardo Franco e eu acompanhamos essa coorte por mais de 30 anos. Mas está chegando o momento de nos aposentarmos. Diante disso, nós decidimos transferir a liderança para a Professora Laura Sichero aqui no Brasil e para a Professora Helen Trottier lá no Canadá. Isso significa manter vivo um estudo com essa dinâmica, com esse valor, com essa riqueza de dados e recursos humanos. É algo que às vezes alguns pesquisadores se esquecem de fazer. Eu e o Professor Eduardo vamos continuar publicando juntos, mas nós passamos o trabalho do dia a dia e o trabalho em novos projetos, com novos alunos, para essas duas lideranças que nos acompanharam ao longo do processo.
Professora Laura Sichero: E para mim é uma honra essa passagem, porque em muitos momentos a minha carreira científica foi pautada por estudos realizados nessa coorte. Eu fiz o meu Mestrado em análise de variabilidade genética de HPV-16 utilizando as amostras do Estudo. Durante o Doutorado, mesmo trabalhando com outras perguntas, eu continuei avaliando essas amostras. Ao longo de toda a minha carreira, conforme foram surgindo novas questões em outras pesquisas sobre HPV, eu continuei buscando respostas nessa coorte. É um projeto que pautou todo o tempo da minha carreira. Receber essa grande responsabilidade é muito importante e gratificante.
C2PO: O que torna uma relação de Orientação tão bem-sucedida como a de vocês duas?
Professora Laura Sichero: Eu comecei a trabalhar com a Professora Luisa em julho de 1995, são quase 30 anos de parceria. A nossa relação é muito harmoniosa e de muita admiração. A minha admiração pela Professora Luisa vem por ela ser a minha mentora, por ela ser o meu exemplo. Ela me ensinou a fazer pesquisa de maneira rigorosa e ética, a fazer o trabalho do jeito certo. E eu sempre tive muita liberdade dentro do grupo dela para propor os temas que eu queria pesquisar. Então é realmente uma parceria de sucesso.
C2PO: Por fim, quais habilidades são importantes para a nova geração de pesquisadores?
Professora Laura Sichero: O que um aluno tem que ter, fundamentalmente, é a paixão pela ciência. A paixão por formular perguntas e correr atrás das melhores formas de respondê-las. E isso inclui a vontade de adquirir conhecimentos básicos, a vontade de adquirir conhecimentos específicos e a vontade de realizar experimentos. Eu sempre gostei de me dedicar, de trabalhar da melhor maneira possível. E sempre fiz muita questão de me informar não só sobre as partes específicas da minha pesquisa, mas também buscar o conhecimento básico sobre outras coisas que poderiam ter influência sobre meu trabalho. Todo esse conhecimento pode ser introduzido nos nossos projetos. Eu digo para os meus alunos: vocês querem conhecer só sobre o projeto de vocês ou vocês querem saber discutir ciência? Para a gente saber discutir ciência, é preciso ter uma formação ampla, tem que ter curiosidade e vontade de estudar e de conhecer as coisas.