A saúde bucal pode estar diretamente ligada ao sucesso do tratamento oncológico: estudos têm mostrado que microrganismos orais podem ter impacto sobre a carcinogênese e sobre a forma como o corpo responde às terapias contra o câncer.
Para entender mais sobre o assunto, o C2PO conversou com o Prof. Henrique Rinaldi Matheus, da disciplina de Periodontia do Departamento de Estomatologia da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (FOUSP).
O Professor Henrique Rinaldi Matheus graduou-se em odontologia na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP) em 2016 e realizou mestrado (2019) e doutorado em Periodontia (2023) na mesma instituição. Nos anos de 2021 e 2022, realizou doutorado sanduíche na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos.
C2PO: Todas as condições de saúde bucal podem estar relacionadas com o câncer e os desfechos do seu tratamento?
Professor Henrique Rinaldi Matheus: Uma condição bucal, chamada periodontite, emerge como um fator potencialmente relacionado ao desenvolvimento do câncer e aos desfechos/toxicidades do tratamento oncológico. A periodontite é caracterizada como uma doença inflamatória crônica que afeta os tecidos de revestimento (gengiva) e de suporte do dente (cemento radicular, ligamento periodontal e osso alveolar). Embora seja uma condição multifatorial, o biofilme dental — cujo acúmulo é favorecido por uma higiene oral deficiente — é um elemento essencial para o seu início e progressão. Pesquisas recentes indicam que os mediadores inflamatórios e os componentes bacterianos liberados pela periodontite podem alcançar a corrente sanguínea, impactando a saúde sistêmica e contribuindo para o agravamento de diversas condições. Um dado particularmente preocupante é a alta prevalência mundial da periodontite severa, que afeta mais de um bilhão de indivíduos em todo o mundo. Vale ressaltar que a distribuição global da doença não é homogênea, uma vez que a periodontite é mais prevalente em países de média e baixa renda.
C2PO: Quais são as principais relações que podemos estabelecer entre a periodontite e o risco de desenvolver tumores? E quais são os principais tipos de câncer relacionados à periodontite?
Professor Henrique Rinaldi Matheus: As principais associações entre periodontite e carcinogênese têm sido investigadas no âmbito do microbioma oral. Os principais mecanismos induzidos pelo microbioma relacionado à periodontite no desenvolvimento do câncer são: (1) comprometimento da função de barreira, (2) síntese de metabólitos e toxinas de bactérias (e.g. sulfetos, acetaldeído, ácido doxicólico e colibactina), (3) indução de inflamação sistêmica de baixo grau, e (4) ativação da proliferação celular. Intuitivamente, pode-se pensar que esta influência seria locorregional, ou seja, restrita a cânceres na cavidade oral, no entanto, a progressão da periodontite causa ulceração do epitélio gengival, facilitando o acesso de produtos microbianos e inflamatórios à corrente sanguínea e, inclusive, bacteremias. Está comprovado que patógenos periodontais, como a Porphyromonas gingivalis e o Fusobacterium nucleatum, são capazes de colonizar sítios distantes, tais como líquido sinovial, pâncreas, intestino, pulmão e, inclusive, cérebro.
Nesse aspecto, assinaturas de micro-organismos orais têm sido identificadas em diversos tipos de tumores. Recentemente, observou-se que a distribuição desses microrganismos, muitos deles sendo patógenos periodontais, em carcinoma espinocelular oral e câncer colorretal não é aleatória, mas sim altamente organizada em nichos com funções imunológicas e epiteliais que promovem a progressão do câncer. Foi mostrado também que células cancerígenas infectadas por bactérias invadem o ambiente circundante como células únicas (single cells) e recrutam células mieloides para regiões colonizadas por bactérias. Nesse caso, como os pacientes não foram avaliados periodontalmente ou acompanhados prospectivamente, não se pode afirmar a temporalidade dos eventos, mas é indiscutível que esses patógenos estão alterando o microambiente do tumor. Por outro lado, resultados de duas coortes (American Cancer Society Cancer Prevention Study-II Nutrition Cohort e Prostate, Lung, Colorectal, and Ovarian Cancer Screening Trial) mostraram que a taxa de 3 patógenos relacionados com a periodontite está aumentada em sítios e fluidos orais de pacientes que desenvolveram câncer pancreático, quando comparada aos que não desenvolveram.
Uma recente revisão sistemática, publicada em uma revista de oncologia, identificou que a periodontite pode ser considerada um fator de risco para os seguintes tipos de câncer: colorretal, oral, pancreático, pulmonar e gastrointestinal. Os autores identificaram que esta associação não é restritamente epidemiológica, também apresentando plausibilidade biológica.
C2PO: De que formas a periodontite pode impactar a eficácia dos tratamentos de pacientes oncológicos?
Professor Henrique Rinaldi Matheus: O impacto da periodontite sobre a eficácia estaria mais relacionado à oncologia de precisão, como por exemplo a resistência ao bloqueio de checkpoint imunológico. Várias linhas de evidência sugerem que a reprogramação e ativação imunológica sistêmica ocorrem em pacientes com periodontite. Células T do sangue periférico de pacientes com periodontite expressaram níveis significativamente mais elevados de morte programada (PD)-1. Importantemente, o bloqueio da interação PD-1-PDL(ligante)-1 não foi capaz de restaurar significativamente a resposta proliferativa das células T desses pacientes, indicando que o bloqueio de PD-1 pode não ter o efeito esperado em pacientes com periodontite. Embora esse resultado não seja totalmente compreendido, uma possível explicação é que a expressão de PD-1 permanece aumentada nessas células e controla a exaustão de células T.
Também, a via do complemento é um componente crucial da resposta imune, facilitando a eliminação de patógenos por meio da inflamação e o recrutamento de células fagocitárias. No entanto, Porphyromonas gingivalis, um patógeno-chave na periodontite, manipula essa via para inibir a eliminação bacteriana, perpetuando a inflamação. Através de gingipains que proativamente geram C5a, que por sua vez ativa os receptores C5a em várias células imunes, o que resulta no aumento da inflamação e na diminuição da fagocitose. Pacientes com periodontite apresentam níveis séricos elevados de complemento C3 em comparação com indivíduos saudáveis, e as vias C3aR e C5aR1 demonstraram suprimir as funções das células T efetoras. Estudos demonstraram que a terapia anti-PD-1 foi mais eficaz em um modelo pré-clínico de sarcoma em animais que não expressam C3, quando comparados a animais que expressam C3 normalmente, sugerindo que altos níveis de C3 dificultam as respostas antitumorais. Da mesma forma, outro grupo observou que a presença de C5a reduziu a eficácia do bloqueio de PD-1 em modelos de adenocarcinoma de cólon. Esses achados indicam que a superexpressão de componentes do complemento, como C3 e C5, na periodontite, pode comprometer a eficácia das terapias de bloqueio do checkpoint imunológico, impactando, assim, a resposta à imunoterapia. Assim, a periodontite não afeta apenas a saúde bucal, mas também pode desempenhar um papel significativo na diminuição da eficácia das imunoterapias contra o câncer.
Além do efeito relacionado à resistência, ao alterar a homeostase imunológica do hospedeiro, a periodontite pode também reduzir o limiar imunológico para o desenvolvimento de eventos adversos imunes (irAE, do inglês immune-related adverse events) em pacientes com câncer tratados com imunoterapia. Este conceito ainda não foi explorado em profundidade, mas vários distúrbios autoimunes se sobrepõem entre a periodontite e irAEs associados ao bloqueio de checkpoint imunológico.
C2PO: No contexto do Sistema Único de Saúde (SUS), há benefício em realizar tratamentos odontológicos em pacientes oncológicos, ou a prioridade deve ser a prevenção?
Professor Henrique Rinaldi Matheus: Certamente a prevenção deve ser uma prioridade no que diz respeito a mudanças estruturais relacionadas a políticas públicas de saúde oral pelo SUS. Por outro lado, diante da atual prevalência e incidência da periodontite na população brasileira, com certeza, endereçar esta condição é necessário, uma vez que a expressão da maioria dos marcadores sistêmicos da periodontite é recuperada a níveis de homeostase após o tratamento periodontal. Agora, pensando no caminho inverso, da terapia alterando a fisiopatologia da periodontite, esta condição foi listada como um potencial irAE do bloqueio de checkpoint imunológico.
Com relação a outras formas de tratamento oncológico, como a radioterapia e a quimioterapia antineoplásica, manifestações orais como mucosite e cárie são comuns, ressaltando a necessidade de acompanhamento pelo dentista. No contexto da periodontite, estudos pré-clínicos em modelos murinos indicaram que agentes antineoplásicos exacerbam a inflamação periodontal e agravam a periodontite experimental através do favorecimento de sua instalação e aumento da taxa de progressão, aumentando o risco de perda dentária em um curto período de tempo, o que reforça a necessidade de diagnóstico periodontal prévio ao início do tratamento oncológico, bem como a importância do acompanhamento ao longo dos ciclos de quimioterapia antineoplásica para detecção precoce das primeiras manifestações de doenças periodontais.
Em adição às condições mencionadas anteriormente, implantes dentários emergiram como uma excelente opção terapêutica para repor dentes perdidos e se difundiram rapidamente, fazendo com que grande parte da população brasileira esteja reabilitada com estes dispositivos. O mesmo grupo que estudou o impacto da quimioterapia antineoplásica nos tecidos periodontais, observou, também em modelo murino, que o processo de reparo e turnover ao redor do componente intraósseo desses implantes é impactado negativamente por agentes antineoplásicos, indicando que os pacientes com implantes poderiam ter complicações relacionadas a essas reabilitações durante o curso do tratamento oncológico, que poderia ser prevenido por acompanhamentos odontológicos regulares.
C2PO: Qual a importância da integração entre a periodontia e a oncologia? Essa integração está avançando ou ainda está muito distante?
Professor Henrique Rinaldi Matheus: O impacto da quimioterapia antineoplásica sobre a instalação e progressão da periodontite e o consequente risco de perda dentária é motivo suficiente para uma melhor integração entre periodontia e oncologia. Diagnosticar e tratar periodontite antes da quimioterapia é necessário, mas não menos importante do que seu acompanhamento ao longo do curso do tratamento oncológico.
Na era da oncologia de precisão, o desenvolvimento de fármacos de imuno-oncologia mudou o panorama do tratamento oncológico e melhorou a sobrevida de pessoas com diversos tipos de câncer; entretanto, eles não estão disponíveis para a maioria da população em países de baixa e média renda, que poderiam se beneficiar destes tratamentos. Um grande avanço em direção à acessibilidade a bloqueadores de checkpoint imunológico no Brasil foi proposto pelo projeto de lei nº 5514/23, que garante aos pacientes oncológicos o direito à imunoterapia por meio do SUS. Dado que a periodontite é mais prevalente e incidente em países de baixa e média renda, o tratamento periodontal pode trazer benefícios cruciais, reduzindo as disparidades em oncologia. Isso se daria pela melhoria das taxas de resposta e pela redução dos perfis de toxicidade dos bloqueadores de checkpoint imunológico em indivíduos com menor status socioeconômico, tanto no Brasil quanto globalmente. Apesar de os primeiros estudos que investiguem a existência (ou não) de associação entre periodontite e resistência/toxicidade à imunoterapia estejam sendo delineados, julgo que as evidências apresentadas até o momento, mesmo que não de associação direta, são suficientes para iniciar um movimento intenso das partes, visando à integração sólida entre periodontia e oncologia.
Em última análise, o impacto negativo das alterações do estado nutricional sobre a mortalidade, morbidade e qualidade de vida em pacientes com câncer ressalta a importância da manutenção das reabilitações e da função mastigatória de pacientes oncológicos, indicando que a odontologia, de uma maneira abrangente, deve ser um componente ativo na oncologia.